sábado, 31 de julho de 2010

Conto: Paixão, lições e dor (Parte 7)

Já pela manhã tentei falar com Raquel, liguei várias vezes. Ela parecia decidida a não me atender. Eu sabia que devia uma resposta a ela sobre nossa possível volta, mas eu definitivamente não estava disposto a falar, a pensar ou a vislumbrar algo sobre isso. Nunca enxerguei muitas virtudes em mim, mas uma era certa, eu sabia priorizar, e naquele momento não pensava em outra coisa a não ser minha amiga Clara e aquela atitude infantil de Raquel de se esquivar daquela ligação. Depois de inúmeras tentativas, mandei um SMS para ela. “Raquel? Câmbio!”

Decidi naquela tarde de domingo fazer uma visita para Raquel, me vesti. Escolhi um jeans claro, tênis Adidas preto e uma camiseta com o rosto de algum artista que não recordava o nome, tinha ganhado da minha mãe, uma camiseta nostálgica com ela. Pus o fone no ouvido, escolhi uma música que me deixasse pra cima, minha playlist não estava muito farta, optei por ouvir uma rádio qualquer. Ao abrir a porta da sala, passei pelo caminho que levava da sala até o baixo portão da minha casa, esse caminho era cercado por pedras coloridas. Me lembro que quando criança eu brincava sempre por lá, e aquele caminho tomou muito mais encanto quando conheci a história do Mágico de Oz. Incrivelmente eu andava agora como aquele leão, procurando um coração mais humano, apesar dele querer ter um coração verdadeiro, coisa que eu tinha, não me via diferente, ambos queríamos fazer algo diferente com nossos corações. De repente pisei em algo, retirei logo o pé, pois senti que se forçasse o passo ela quebraria. Era um aparelho celular, eu conhecia aquele aparelho.

Retirei rapidamente o fone de ouvido, como quem quer abrir espaços para entendimento das coisas externas. Abri o celular e não tive dúvida, era o celular de Raquel, no visor indicava várias ligações não atendidas e sinais de mensagens de voz e de texto, no plano de fundo via a foto de um rosto sorridente que remetiam a uma gueixa, Raquel. Entendi porque ela não havia me atendido. Raquel não é o tipo de mulher que foge de confrontos, ela pode até titubear, que de fato havia acontecido, mas ela não correria eternamente como parecia estar fazendo, cedo ou tarde os problemas deveriam ser resolvidos, ela gostava que fosse cedo, isso ocasionava diversas decisões infantis e desesperadas, mas ela não sabia aprender com seus erros, muito menos gostava que tentássemos ensinar essa dádiva a ela.

Peguei o aparelho do caminho que levava à Terra de Oz. Entrei e novamente me vi sentado no sofá de couro, gelado como sempre. Acho que está na hora de trocar o sofá. Abri o celular, pensei em dar uma vasculhada inocente, menti para mim mesmo achando que invadir a privacidade de Raquel seria algo normal. Certamente brigava com algo mais forte que eu, então abri o celular, nenhuma mensagem, apenas a minha, nas ligações nada de interessante, apenas nome de mulheres, suas amigas, mas um número me chamou atenção. Sabia que ele não me era estranho, mas não conhecia o nome. Disquei do meu celular, me surpreendi, era o telefone de Matias. Desliguei antes de completar. Por que Raquel tem o número de Matias em suas ligações e ainda com outro nome? Seja como for, desisti de visitar Raquel, aquela era a prova fidedigna de que ela não seria transparente comigo. Pensei em como tirar essas dúvidas, a atitude estranha de Raquel quando falei de Clara, e agora esse contato com Matias, eles nunca haviam se encontrado. Existia um mistério no ar, eu estava disposto a entendê-lo. Farei discretamente!

Apertei novamente o send do meu celular. Chamando Matias Fat Family.

- Fala, maluco! – Matias atendeu, e não pestanejou em caçoar de mim. – Ainda está com a dor do amor?

Gargalhei e entrei no seu jogo.

- Fala, Fat!  Só sofre quem tenta, namorar um Playstation é mais fácil, concorda?

Matias riu e praguejou algum palavrão. Combinamos de nos encontrar no Bar Vermelho naquela tarde.

O Bar Vermelho era um lugar bastante aconchegante, sua entrada era quase impossível de ser vista, às vezes eu pensava que ele era como uma sociedade secreta, porque para chegar até ele, alguém precisaria apresentar sua entrada. Tornado era o dono do bar, certa vez eu descobri o nome verdadeiro de Tornado, era Altair, mas ele se negava a assumir e falava que se parássemos de insistir em saber seu nome, ele nos daria uma tequila. Nós parávamos, mas ele sempre colocava a tequila na nossa conta. Tornado era um cara bastante divertido e sempre tinha uma piada de argentino para nos contar, um homem excêntrico, hippie com seus cinqüenta anos, ouvia reggae e sempre que eu pedia para mudar a música, ele me xingava de capitalista doente, magricela e contador de histórias, seus cabelos ruivos iam até os ombros, e sempre dizia que tinha adquirido aquela cor no cabelo por causa de seu contato com o Deus-Sol! O bar não se chamava Vermelho apenas por sua cor de cabelo, Tornado tinha um drinque especial que não revelava a receita para ninguém, e toda vez que algum novo visitante era iniciado naquela “sociedade secreta” ele oferecia um desse drinque antes de qualquer outra bebida, e se o iniciado não aceitasse, era a maior desfeita, lembro de várias vezes ter visto Tornado mandar novos clientes embora porque se recusavam a beber seu drinque vermelho.

Cheguei antes que Matias no Bar do Vermelho. Sentei no balcão, e pedi uma dose do líquido secreto do Tornado. Pedi que ele colocasse uma música do Gilberto Gil, apenas olhou para mim com desdém. Matias então chegou, já gritou de longe e falou para Tornado trazer uma cerveja gelada.

Matias era uma pessoa bastante diferente. Éramos amigos há tempos. Nos conhecemos quando jogávamos futebol para o time de nossa cidade, ele era o goleiro. Fatidicamente paramos, mas amizade perdurou, sempre nos falávamos e nosso ponto de encontro era o Bar Vermelho, o tempo não foi muito bom para a estética de Matias, ele engordou absurdamente e assim adquiriu o apelido de Fat Family, ele não parecia ligar, e isso me fazia admirá-lo mais. Ele sempre era o garoto mais assediado do time, as meninas tiravam fotos com ele, gritavam seu nome e ele nunca pareceu se importar, seus games de mão eram mais importante. De fato, Matias era um garoto diferente, tinha uma coleção de vídeo game, e sempre que eu podia, ia até sua casa paga jogar Atari. Ele não era muito alto, usava óculos estiloso, e se vestia de preto, achava ser um roqueiro. Sua cara era bastante redonda, e sazonalmente o chamava de Trakinas, seus olhos pareciam como de um mangá, garanto que eles eram incisivos e denunciavam sempre se Matias acreditava ou não no que falavam a ele. Matias sabia enganar aos outros, mas seus olhos o entregavam. Ele deu o primeiro gole na sua cerveja. Fui indireto.

- A Raquel esteve em casa ontem.

- Voltou a madame? O que ela queria?

- Conversamos sobre Hércules, acho que ela quer voltar comigo. Ninguém agüenta meu charme. – Brinquei. – Você precisa conhecê-la pra me dar sua posição. – Joguei com Matias, na esperança que ele começasse a falar sobre o contato dele com Raquel.

- Se ela souber jogar GTA, eu aprovo, do contrário...

- Matias, sem rodeios. – Levei a conversa para um tom mais sério. – Por que ela tem telefonado para você?

Matias procurou palavras, e tomou outro gole de cerveja para o tempo conspirar a seu favor.

- Ela... Bom, ela queria saber sobre você.

Comecei a observar seus olhos.

- Ela comentou algo sobre a Clara? Sobre o que aconteceu com a Clara?

- Mas o que aconteceu com a Clara?

Percebi que algo de estranho estava acontecendo, eu havia conversado com Matias sobre o ocorrido com Clara por MSN, visivelmente ele tinha se esquecido desta conversa e resolveu mentir para mim.

continua...

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Apareçam!

Fico muito feliz com o sucesso do conto, muitas pessoas têm comentado comigo sobre ele.
Fiquei ainda mais feliz com uma amiga que voluntariamente começou a reescrever meu conto como sendo Clara. Apareçam por lá! Fiquei ainda mais honrado por ela ser uma jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas. Obrigado Patty! Segue o link:


Segredos de uma Paixão - Parte 1


Abraços a mãe do Thiago, Christiane, que sempre aparece por aqui para desestressar!

Conto: Paixão, lições e dor (parte 6)

Raquel não era do tipo de pessoa que pede redenção. Era claro como ela entendia a vida, um misto de negócios e sentimentos, ela não conseguia entender a vida com seus paralelos, e certamente se fosse fazer uma analogia sobre seu coração, ela não titubearia em usar a bolsa de valores como sua metáfora para o amor. Novamente não estava fazendo diferente.

Raquel queria mostrar poder, queria mostrar suas conquistas e discorreu por muito tempo seus trabalhos, detalhou em minúcias um projeto que lhe rendeu um prêmio em dinheiro que ela usou para trocar seu carro. Eu apenas assentia com a cabeça, soltando alguns risos forçados. Estava diante de Raquel e aquele encontro foi diferente do que eu havia vislumbrado. Achava que teria sérias reações e que imploraria uma volta. Eu amava Raquel, por que não sentia aquilo agora?

- Hei, por que está tão calado? Você está bem? – Raquel perguntou com um sorriso no canto da boca. Eu sempre me preocupei com Raquel, e me atinha aos pequenos detalhes, sabia que quando seu sorriso era levado para o canto da boca, ela estava perguntando algo a menos do que queria saber. Detalhes que só quem ama sabe o que é.

Retribui o sorriso e respondi.

- Impressão tua! Trouxe o cheque da pensão do Hércules? – Uma piada para quebrar o gelo. Nós dois rimos. Raquel entendeu que seria melhor ela perguntar do nosso dálmata.

- Ah, preciso do exame de DNA, ele não se parece em nada comigo. – Rimos.

Abri a portas que dá para o quintal, chamei por Hércules, ele veio correndo na esperança de um prato de ração, olhou para mim abanou seu rabo, então apontei para Raquel, que estava dentro da cozinha. Hércules sempre pulava nela, mas dessa vez foi diferente, cheguei a pensar que ele estava gelando Raquel pelo o que ela me fez sentir neste tempo. Raquel foi até ele, deu uns dois beijinhos em sua testa e o deixou correr pro quintal. Esse foi o único contato dos dois.

Estávamos Raquel e eu olhando para o Hércules correr pelo quintal, então Raquel pegou no meu braço e disse que precisava falar comigo. Fomos até a sala e sentamos no sofá de couro preto, gelado como sempre.

- Bom, sei que já tem um tempo desde que terminamos. Acredito que não tenha sido da melhor forma e confesso que carrego comigo certa culpa. – Aquilo não era uma declaração típica de Raquel. Assustei, mas em breve ela mostraria algo mais natural dela. – Sabe, eu sinto falta de você, mas você não me deu opção, tínhamos que ter acabado, sua distância, sua ausência, mas vejo que esse tempo foi o suficiente para entendermos que temos que ficar juntos.

- Hei Raquel. Acho que não estou entendendo. Você veio até aqui para me dizer que eu estou errado, e que posso rever isso? Você veio me oferecer uma chance? – Falei polidamente, mas ela havia me deixado feroz. Raquel havia acabado de oferecer esmola a alguém que não era mendigo.

- Não. Me entendeu mal. A gente pode recomeçar.

- Raquel. Tudo o que tenho sonhado desde que terminamos é esse dia, o dia em que você visse que poderíamos nos entender. Mas Raquel – respirei fundo – você conseguiu acabar com todo o encanto. Definitivamente não sei o que te dizer... Só saiba que o mundo não conspira a seu favor, e que não se conserta esse estrago que você fez em mim simplesmente me dando a oportunidade de estarmos juntos novamente, e aquele outro homem? – Não consegui segurar uma única lágrima que escorreu.

- Veja bem. O Henrique foi necessário na minha vida para que eu crescesse emocionalmente. Ele fez parte de uma emancipação pessoal.

- Merda! – Me surpreendi com que disse. – Quando você vai conseguir admitir um erro seu? Único e exclusivo seu? Raquel, por favor, seja alguém diferente! – Eu já não era mais tão polido. Henrique era o seu nome. – Cansei de ver você profissionalizar a vida, e se por como chefe diante de todas as situações. Nem sei se essa conversa sua é um pedido de volta, não posso negar que é tudo o que eu queria, mas eu preciso pensar sobre isso.

- Okay. Me desculpe a petulância, quero você de volta mesmo. Vou embora, posso esperar sua ligação?

- Sim.

Raquel pegou sua bolsa. Me deu um beijo longo no rosto, meu coração gelou e tive lembranças. Lembrei de nosso primeiro beijo. Tínhamos ido ao cinema ver uma animação qualquer, Raquel sempre gostou de desenhos animados, me parecia sua fuga infantil para o mundo tão competitivo que ela criava. Ao sairmos, quando estava passando os créditos, todos se levantaram. Eu fiquei sentado, ela me apressou, vamos. Sorri, segurei na sua mão e pedi para que ela me amasse. Foi nosso primeiro beijo. Retirei uma mecha de cabelo que estava sobre seu rosto, toquei carinhosamente seu rosto que já estava corado nas maçãs. Juro te amar! Aquele momento foi eternizado, na saída do cinema, comprei um sonho de valsa para Raquel, depois de comer o bombom, ela deu um nó na embalagem e me devolveu. Tenho até hoje guardado esse mimo. Tão pequeno e tão valoroso, era uma ótima recordação.

Assim que me afastei de Raquel, senti a necessidade de ter que abraçá-la novamente. Abracei, não disse nenhuma palavra, não queria beijá-la, apenas queria senti-la. Sentia algo dentro de mim que me dizia ela é sua, ela é sua. Por um tempo fiquei assim. Então meu celular tocou. Desvencilhei dela, fitei-a com olhar meio sonso, ela fez movimento como quem se prepara para ir embora.

- Espere Raquel. – Peguei o telefone, olhei no identificador e me assustei, Clara! Como poderia, ela estava em coma? Olhei novamente para Raquel. – É Clara, uma amiga!

Obviamente que Raquel nunca saberia quem era Clara, sempre soube da preocupação de Raquel com meu círculo de amizade, e saberia que qualquer mulher que esboçasse um mínimo de interesse por mim, mesmo sendo amistoso ou mesmo materno, era pretexto para uma longa briga. Poupei Raquel de saber de minha amiga, assim como me afastei de Clara também. Me recordo de pequenos gestos de ciúmes de Raquel quando minha mãe se aproximava de mim para um simples beijo afetuoso. Mas algo me impressionou com essa ligação.

Assim que mencionei o nome de Clara, Raquel estampou em seu rosto uma reação dantes nunca vista por mim. Estranhei. Parecia que ela sabia de algo, que me escondia algo e que deveria fugir daquela situação para não ter que me explicar o porquê desta atitude diferente. Me dividi entre atender o celular e interrogar Raquel. Atendi.

- Alô? Clara? – uma voz conhecida do outro lado me respondeu. – Oi Rose. Tudo bem sim.

A irmã de Clara, Rose, me ligou do celular de Clara, queria me dar notícias sobre ela, disse que ela havia demonstrado considerável melhora, e que pensou em me ligar porque em um momento de clareza rápida Clara havia dito meu nome. Fiquei encabulado, sei que corei, então chorei, senti saudades da minha amiga, senti um misto de culpa por não ter o que fazer, pensei o que ela faria se fosse o inverso. Desliguei o celular. Olhei para o alto como se fosse encontrar algo, então voltei meus olhos para porta, onde Raquel estava ao atender o telefone. Então vi que Raquel tinha ido embora. Assim, sem pestanejar ela havia desaparecido de lá. O que será que aconteceu?

Liguei para o celular de Raquel. Tentei três vezes, ela não atendeu. Deixei um recado na caixa postal. Assim que puder, me ligue, por que saiu correndo assim?

Confesso ter achado aquela atitude demasiadamente estranha. Raquel nunca fugiria de algo que era visível que me perturbava. Ela não sabia quem era Clara, aquele aspecto intrigante e duvidoso de seu rosto me deixou perdido em pensamentos que julgava ser impossível. Não... não... Será? Acho que vou tomar um café...

Prometi ligar para Raquel para dar-lhe uma resposta sobre nós, mas agora além desta resposta eu também tinha uma pergunta, aparentemente tola, mas não viveria sem saber.


continua...

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Sobre a dúvida

Poucas coisas me mantém acordado. Dormir é um bem difícil de ser retirado de mim. Tenho tendência natural e genética para boêmia. Apesar de alguns princípios pessoais me privarem das infinidades dos prazeres noturnos, sei que me sinto mais a vontade na noite, no silêncio, no anonimato. Mesmo tendo essa predisposição obscura, não posso dizer que sofro o mal da insônia. Facilmente pego no sono, e mantendo a idéia inicial, algumas coisas me mantém acordado quando, porém, meu sono vence, elas são objetos de meus sonhos.

São 4h38, acabei de ver a última temporada de House. Dividi esses capítulos de House com outro pensamento, aqui abro um desses elementos que faz parte deste seleto rol que me priva do descanso fácil.

A dúvida.

Tenho intenções, preceitos, expectativas, alguns destes são planejados a longo prazo, outros a curto, porém o fato de não saber sua consumação não faz de mim um sofredor da dúvida, faz de mim alguém que aguarda e luta para isso. Ao falar de dúvida digo especificamente do incerto, das entrelinhas, do “fica no ar”.

O problema da dúvida é o como a interpretamos. Ninguém simplesmente convive com a dúvida sem conjecturar sua resolução. Sei que os resultados variam de pessoa para pessoa, uns são mais esperançosos, agem como Poliana e outros como Murphy. Não sei muito bem qual é mais traumático, mas o fato é que a dúvida não é exclusiva por si só, não existe caráter de unicidade na dúvida, ela sempre atrela a si ou o pior final ou a esperança. Atenho-me a esperança.

Esperança cria sonhos, cria mundos e castelos. Essas criações são altamente fictícias e impalpáveis, por se tratarem de ilusão acredita-se que a perda deste mundo abstrato não haverá de proporcionar dores. Acho que neste caso nos equivocamos. A incerta esperança quando frustrada não toma caráter fictício, sua dor não perdoa e além da alma parece trazer dores ao corpo. Qual o poder da esperança em nossa vida?

O fato é que nossas dores são inevitáveis e refletir sobre a criação de um elixir para que elas se amenizem é no mínimo um pensamento de quem ousa fazer diferença. Aprendi que racionalidade e realidade são os atributos mais nobres para que passemos por esta vida. Idealizamos em demasiado o mundo, o pintamos de cores alegres e acreditamos que no fim tudo se encaixa, romantizamos a vida. Não podemos descartar a beleza das emoções, mas elas devem ser moderadas, devem ter tarjas pretas.

Entenda o que foi dito, limite-se apenas a interpretação do que foi explicado. É a arte de não padecer. Se te foi colocado a dúvida, entenda-a um não alcance, porque de fato o é. Só acredite no que é palpável quando estiver de fato em suas mãos. Sei que pode soar como pessimismo, mas baseando-se num mundo real, o pessimismo pode ser uma fórmula ótima para criar nossos anticorpos. Nunca se olvide que o pessimismo não é sinônimo de desistência, para mim ele é apenas a oportunidade de se deixar ser surpreendido.

Estou falando do coração? O que mais importa tanto?

Vale relembrar uma citação de uma pessoa que aprendi muito que sempre parafraseava Salomão: “a esperança adiada adoece o coração”.

Na dúvida, apenas se ame, pelo de nós podemos prever os resultados... Nem todos os resultados, mas...

terça-feira, 20 de julho de 2010

Conto: Paixão, lições e dor (Parte 5)

Havia colocado o fone de ouvido para ouvir Djavan e me livrar dos comentários mórbidos daquele lugar. Fui acordado por Rose que me trazia informações médicas. Ela me aconselhava a ir para casa descansar já que Clara estava desacordada e assim que tivesse notícias me ligaria. De imediato neguei seu pedido, sabia que se a situação fosse inversa Clara jamais arredaria o pé daquela UTI. Rose me apresentou inúmeros argumentos, e por fim me convenceu a voltar para casa.

Não me recordo de como ter chegado ao hospital, olhei para os meus pés e percebi que ainda estavam descalços, o chão gelado me incomodava. Procurei as chaves do meu carro, em vão, então chamei um táxi. O caminho me pareceu uma tortura. As indignações e questionamentos tomavam minha mente sem piedade. Acompanhava com os olhos as luzes da cidade, conforme iam passando por mim, me traziam reflexões. Pensei então na brevidade da vida, usei do acender e apagar das luzes uma metáfora dela. Hoje aceso, amanhã não, me senti sem forças, sem expectativa, me desmotivei por entender que a vida não atende muito aos nossos comandos e que por inúmeras vezes toma caminhos que não temos gestão. Essa idéia me chateou. Enfim, em casa.

Assim que desci do táxi, corri para meu quarto pegar minha carteira, calcei minhas havaianas vermelhas e desci para pagar a viagem. Agradeci ao taxista e notei seu bigode digno de um mexicano. Achei engraçado e não contive uma piada sem graça: Gracias señor. Apesar de ousar humor nesta situação não sorri, e o taxista muito menos. Fui até a garagem para me certificar de que não havia ido de carro para o hospital. Ao voltar, encontrei com Hércules no caminho, abaixei e recebi um de seus beijos molhados, entendi como um consolo para alguém que sofria.

Olhei para o relógio, três horas. Praguejei o tempo, ele sempre conspirava contra mim. Corria nos melhores momentos e me dava golpes morosos em tempos de dores. Fui para a cozinha, permiti que Hércules me acompanhasse. Enchi uma tigela com leite para ele e coloquei água para ferver, um chá seria a tentativa de me acalmar, chá de prozac seria ideal.

- Oi filho – minha mãe entrou na cozinha – tentei te ligar, mas ouvi seu celular tocando no quarto, fui obrigada a te esperar.

Abracei minha mãe. Chorei.

Aquela mulher que eu abraçava certamente havia sido projetada exclusivamente por Deus para ser mãe, sua voz era doce e conseguia ainda assim trazer broncas com bastante eloqüência. Os ombros da minha mãe haviam sido feitos especialmente para suportar confortavelmente abraços, os braços dela pareciam entender dores, e além de entender tinham o cuidado de deixá-las mais leves, mais fáceis de enfrentar. Chorei muito, a ponto de molhar seu pijama azul claro. Pedi desculpas, ela meneou a cabeça como quem diz não ter problemas, e olhando para os meus olhos, entendendo minha dor, pôs-se a chorar também. Minha mãe soube chorar por mim e por Clara, ela compreendia o momento.

- Ah, mãe! – falei com a voz embargada. – Por que isso foi acontecer com a Clara?

- Filho, - disse minha mãe em tom de conforto, - existem momentos em nossas vidas que não vamos entender nunca, ouso ainda dizer que não os vamos entender justamente por não terem mesmo explicação. Eu gostaria muito de confortá-lo com esperanças, explicações e dizer que isso não passa de um momento e que Clara terá vitória. Mas filho, – nessa hora minha mãe limpou uma lágrima de seu olho, respirou fundo e voltou falar – só posso te encorajar a continuar, a torcer para que Clara se recupere, não busque explicação, sua busca dói muito, apenas enfrente a situação. Sei que ela é tua amiga, lembre-se dos momentos bons que viveram. Isso te fará sentir melhor.

- Mas isso é injusto! Ela é a pessoa mais pura que conheço, mãe! – Desabei a chorar e a soluçar.

- Como te disse, meu filho. Justiça é fazer doer, sinto dizer, mas a injustiça também é para todos.

Dei um beijo em minha mãe, tomei o último gole de chá, e fui para o quarto na esperança de poder cochilar um pouco. Era sexta-feira, não trabalharia no sábado, vibrei por não ter que explicar minha falta no outro dia ao meu chefe, poderia dormir um pouco mais. Subi para o meu quarto, minha mãe passou a mão no meu rosto e disse que estava orando por mim e por toda a família de Clara. Pela primeira vez me questionei se Deus tinha propósitos para todos nós, questionei ainda se Deus jogava dados com o universo. Subi para o quarto e na escada questionei se Deus de fato existia. A dor nos faz tolos ou sábios. Torci para ser um momento de tolice.

Assim que entrei no quarto, abri meu notebook, conferi alguns e-mails, respondi outros, abri meu MSN, vi Matias online, conversamos um pouco, ele ficou de vir me visitar, achei bom, não que queria estar com alguém, mas fugir da presença de meus monstros seria saudável. Desconectei, deitei na cama e acendi meu abajur, olhei para o teto antes de abrir o livro que havia começado a ler naquela semana. Era Clarice Lispector, “A Hora da Estrela”, antes de iniciar a leitura, olhei uma frase na capa que me chamou atenção: “Ela acreditava em anjos e porque acreditava, eles existiam.” Acreditei em Deus.

Com os pensamentos inquietos vi a oportunidade de ler o livro todo, o fim não me fez melhor, fiquei mais sensibilizado. Me dei a oportunidade de pegar no sono, depois de relutar, virar e me contorcer na cama, dormi. Sonhei. Meu sonho trazia consigo certo peso, via neste sonho uma mão que eu conhecia, que sabia onde encontrar, mas não distinguia seu dono, ela cada vez aumentava seu tamanho e como num estouro ela se sujava de sangue. Acordei algumas vezes e sempre que pegava no sono via esta imagem.

A campainha soava insistentemente. Acordei, olhei no relógio, dez horas. Droga, hoje é sábado! Desci as escadas gritando para a visita aguardar, prometi para mim mesmo que se fosse um vendedor eu jogaria água quente nele. Próximo da porta de entrada, em uma pequena estante, havia um bilhete da minha mãe que dizia ter ido ao mercado. A campainha voltou a tocar. Calma!

Abri a porta. Assustei. Sei que não contive a cara de espanto e por alguns momentos emudeci.

- Oi Raquel...

Certamente ela havia se vestido para um encontro e não para ver seu cachorro sujo. Como poderia ter esquecido? Havíamos combinado sua visita para o Hércules. Então me expliquei.

- Desculpe a demora pra atender a porta, é que estava dormindo tive uma noite complicada e...

Raquel me interrompeu, me abraçou da mesma forma de quando éramos namorados. Hesitei por uns segundos e retribui o abraço com muito menos sentimento. Raquel percebeu sua ousadia e recuou.

- Nossa, você está muito bem! – me elogiou com um belo sorriso no rosto.

Agradeci o elogio e pensei comigo, será que ela esperava que eu me anulasse por ela? Raquel notou meu desdém por ela, por algum motivo sua presença não me alegrou, confesso que também não me entristeceu, entendi que Raquel nesse momento não fazia parte do topo de minhas prioridades, uma perda pra superar outra perda? Vida injusta, não ousaria pensar o que perderia para superar a possível morte de Clara.

Convidei Raquel para entrar, ela foi tomar café da manhã comigo, conversamos bastante, e me perguntava quando ela perguntaria por Hércules, o verdadeiro motivo de sua presença. Acho que ela havia esquecido disso, já havia se passado uma hora e nada.

Aquele dia seria longo. Longo e torturante.


continua...

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Conto: Paixão, lições e dor (parte 4)

Depois do trabalho, me atrasei por alguns detalhes aqui, outros acolá. Corri para a casa. Assim que cheguei, corri para o banho, liguei para Clara para avisar que atrasaria alguns minutos. Ela não atendeu, mandei um torpedo e corri para baixo do chuveiro. Ao enxaguar a cabeça e cantarolar uma música qualquer ouvi um som vindo da janela, que dava para a rua, pareciam sirenes, pensei comigo, tomara que minha casa não esteja pegando fogo, não seria muito nobre sair pelado na rua. Ri sozinho.

Clara havia me ligado a tarde e dito que tinha escolhido um restaurante de comida árabe para nossa sessão terapêutica – era com eu chamava nossas programações com cunho de desabafos pessoais – apesar da minha tentativa de fazê-la individual, Clara havia escolhido o que eu mais gostava, eu sabia que ela só comeria um quibe. Não discuti, apenas aceitei.

Depois do banho, enquanto me vestia para sair, peguei meu celular e vi que havia insistentes tentativas de contato, meu telefone estava no silencioso, não conhecia aquele número, mas retornei.

- Alô? – alguém ofegava do outro lado, bastante desesperado.

- Oi, você ligou para mim? Precisa de... – fui interrompido com uma história avassaladora, uma estaca veio contra meu peito.

Vesti a primeira camiseta que encontrei pela frente, sai correndo descalço do meu quarto, a escada para a sala parecia não ter fim, então pulei os últimos degraus. Enquanto ainda estava na sala gritei por minha mãe, apenas Hércules respondeu. Droga.

Passei apressado pelo quintal, e desci para a casa de Clara. Por quê? Como? Não... não! Aquele telefonema tinha me trazido questionamentos que seriam quase impossíveis de responder.

Cheguei rapidamente à casa de Clara, havia uma movimentação muito grande, pessoas tentando ver o que havia acontecido, comentários e até alguns repórteres. Os policiais seguravam a passagem para que ninguém entrasse na casa e certamente para que nenhum repórter sensacionalista usasse a fragilidade do momento para aumentar sua audiência. Gritei por Rose, a mulher que havia falado comigo no telefone. Ela veio ao meu encontro, incrivelmente ela parecia me conhecer. Rose se apresentou, ela era a irmã mais velha de Clara, apesar de ser bonita, tinha uma cara típica de uma mãe que isolou sua vida para cuidar de seu marido e filhos, suas rugas se acentuavam bastante, parecia atordoada, e seus olhos denunciavam seu choro. Então rasgou a falar.

- Cheguei aqui por volta das sete horas. Chamei por minha mãe, que não atendeu. Então percebi que a porta estava destrancada com a chave para o lado de fora. Entrei chamando por Clara – seu choro interrompeu a história, eu não sabia o que fazer, então Rose respirou fundo e continuou. – Ouvi uns barulhos que vinham do quarto da Clara, fui até lá, quando entrei, quase desmaiei. Clara estava jogada no chão, completamente ensangüentada, seus olhos quase não tinham vida. Minha primeira reação foi falar com ela. Clara... Ah Meu Deus. Então me equilibrei e liguei para a polícia. Ah! Quem faria isso com ela?

- Mas Rose, – perguntei estarrecido. – Ela está bem? Posso vê-la?

- Os médicos estão lá, fazendo um atendimento de emergência, preparando para levá-la ao hospital, pediram um tempo por enquanto. Por sorte ela sobreviveu. A polícia suspeita de latrocínio, mas ainda não conseguimos ver se algum objeto sumiu. Eu te peço desculpas por te ligar assim, mas o seu número era a última ligação do celular dela, e...

- Rose, sem problemas - interrompi.

Então ela se calou e chorou em meus braços. Olhei então para dentro da casa e vi em um canto um casal que se abraçava calado. Era o pai e a mãe de Clara e Rose, que pareciam inconsoláveis.

Rose pediu para que os policiais me deixassem entrar também. Sem saber o que fazer na casa, andava em círculos pela sala, meus pés descalços sentiam o tapete fofo que até então era o mais perto de algum conforto que poderia sentir.

Depois de alguns minutos metidos a horas, Clara saiu desacordada de seu quarto, deitada em uma maca, cercada de pessoas vestindo verde, talvez enfermeiros. Não consegui ver seu rosto. Mas sabia que algo não estava bem. Atordoei. Não me lembro como, mas quando dei por mim estava sentado em uma poltrona no hospital Madre Tereza.

Olhei para o lado, vi um rapaz que chorava muito. Quem era ele? Desliguei novamente, pensando em quem faria isso com Clara. Cochilei, quebrando a rotina meu alvo de sonho deixou de ser apenas Raquel, Clara também participou.

continua...

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Sonho é de papel

Saindo um pouco do campo da ficção. Finco meus pés na mais dura realidade. Hoje pretendo falar um pouco sobre sonhos, quero dissertar brevemente sobre verdades e mentiras que cercam nossos desejos. Segunda, 5h35, já abro meu coração dizendo que minha alma está um pouco abatida, fui acometido recentemente por problemas de cunho personalíssimos, e desde logo peço perdão pela frieza do texto. Garanto, todavia, que a frieza não trará inverdade, apenas deixará o texto mais gélido, mais frígido, uns acham beleza nisso, sendo espectador sim, mas protagonista, não mesmo.

Existe uma indústria famigerada que prega sobre sonhos de uma forma tão envolvente, que a utopia por vezes deixa seu caráter impalpável e cria expectativas que não podem ser supridas por nada. As músicas nos encorajam, as palestras motivacionais nos despertam, as igrejas pregam ferrenhamente. Conteúdo não falta para dizer que os sonhos mais impossíveis são alcançados com esforços desmedidos.

Refuto!

Uma das maiores mentiras plantadas na sociedade é a de que todos nossos sonhos serão realidades. As mensagens são nobres, “corra, busque”, “não desista”, “tente outra vez”. Não quero tirar a poética do recomeço, a hombridade da luta, quero temperar a vida com realismo. Garanto que ilusão faz parte sim do processo de viver, tornam as coisas mais fáceis, mas salvo engano, a ilusão só pertence ao nosso sono, o resto é muito real, diria assustadoramente real.

Existe “n” formas de avaliação pessoal, e uma clássica é a que somos exatamente do tamanho de nossos sonhos. Até pode ser real, mas isso não quer dizer necessariamente que chegaremos até o sonho. Noventa por cento do que sonhamos não vai acontecer. Existem postos que são únicos, e duas pessoas não podem ocupar o mesmo lugar. Nem todos serão ricos, nem todos nasceram em famílias privilegiadas, nem todos estudarão em faculdades públicas, alguns sequer farão faculdades.

Existe uma indústria implícita em nós que gira conforme uma imensa engrenagem chamada dependência. O que almejamos para nós mesmos muitas vezes dependem de terceiro, e pasme leitor: não temos gestão sobre terceiros! Não podemos virar a cabeça de alguém, não podemos movimentar vontade de outros, não podemos sozinhos eleger alguém.

A sociedade e o mundo foram feitos para serem vividos em coletividade, os sonhos muitas vezes nos torna único. Doloridamente, essa exclusividade esbarra na regra da coletividade, e vaza para o ralo todo o encanto do sonho.

Não quero “gorar” projetos, nem tenho a intenção de ser uma pedra no caminho dos sonhadores, repito, é nobre. Encorajo a prosseguir, a tentar, lutar. Sabido é que a maioria não alcança, mas algo é fato, os que alcançam sempre tentaram. Corra o risco, mas não deixe que a frustração do não te afogue. Prefira ter em sua lápide: “tentou” ao invés de “um homem bom”. No máximo adquirirá muitas histórias e experiências. Acredite, suas histórias serão levadas para a posteridade, e quanto a sua experiência, quem sabe alguém não a use para seu sonho?

Tentei, tentei e tentei. Se não consegui, a culpa não é minha!

Convite

Convido os jauenses a comparecem na Igreja do Nazareno nesta terça-feira, dia 13, às 19h30.
Este que vos escreve dará uma palestra (aos néscios) e pregação (aos cristãos) sobre:


"Superando limites da dependência"


Prometo ser breve, sucinto e edificante.
Aguardo a presença de todos.


Davi

sábado, 10 de julho de 2010

Conto: Paixão, lições e dor (parte 3)

Depois de revirar muito na cama, me entreguei definitivamente à insônia. Olhei para o relógio e praguejei minha ansiedade. Quatro da manhã. Saberia que o sono viria na hora mais inoportuna, no trabalho. Dado por vencido, depois de revirar um pouco na minha cama a ponto de milagrosamente retirar o lençol e encontrá-lo depois embaixo da cama, fui matar meu tempo.

Questionei algumas coisas. Questionei o porquê de pessoas terem esse poder biológico sobre outras, indaguei o que via em Raquel para que ela me tirasse o sono, isso é incomum. Não consigo me lembrar de usar subterfúgios para dormir, e agora um simples telefonema, nem tão pessoal, havia alterado meu cronograma pessoal. Tentei não responder minhas dúvidas, não queria encarar a verdade, preferia entender que a janta havia pesado no estômago. Eu era bom em mentir para mim, e agora seria uma boa hora para me usar contra mim mesmo, era hora de fantasiar, era hora de ser quem eu queria ser, livre.

Saí do meu quarto, desci a escada e sentei-me no sofá de couro preto. Aquele couro parecia mais gelado que de costume, sugestivo. Hércules tinha permissão de entrar em casa enquanto houvesse pessoas acordadas, mas a noite ele tinha que dormir em sua casinha no fundo do quintal. Nessa hora ele percebeu que havia movimentação na sala, do lado de fora raspou a pata na porta pedindo para entrar. Foi bom, de fato era o que eu precisava, uma companhia calada. Abri a porta da sala, Hércules entrou abanando o rabo como uma hélice prestes a tomar altura, me deu duas ou três lambidas, sua maneira de dizer bom dia. Sentei-me no sofá, Hércules sentou-se ao meu lado, parecia entender minha necessidade pessoal de ser compreendido em silêncio e repousou sua cabeça no meu colo, olhando-me com olhos atentos, como se lendo meu pensamento, por um momento ri um pouco. O seu olho esquerdo era cercado pela mancha preta típica de um dálmata, aquele olhar penetrante o fazia ser digno de ser batizado novamente, talvez Freud. Voltei a pensar, e permiti que Hércules ouvisse meus pensamentos.

Ao pensar não levantei teses e possibilidades, apenas relembrei algo que tinha a intenção de esquecer, mas não consegui.

Lembrei daquele dia, o dia em que com ajuda de Clara havia prometido pra mim mesmo que nunca mais deixaria alguém fazer de minha vida algo pior. Clara me fez repetir “as pessoas entram em nossa vida para acrescentar, e se não fazem isso elas são prejudiciais, mesmo que não pareçam”. Foi um mantra pra mim, e me lembro de receber alguns e-mails de Clara que com um toque leve de humor me lembrava dessa máxima.

Continuei a lembrar, lembrei do término entre Raquel e eu, lembrei-me das causas e de como eu havia sido injusto comigo em pedir que ela partilhasse da vida dela em minha vida. Eu sabia que algo não corria bem, arrastamos um relacionamento por dias, ambos protelávamos o fim, na realidade eu acreditava que o tempo fosse curar algumas coisas, mas vi que o tempo está mais para um placebo, Raquel sabia que o tempo não era medicinal, e isso que acontece com quem usa placebo sabendo o que ele realmente é. Não funciona. O tempo só me desgastou mais.

Raquel estava cursando seu mestrado em comércio exterior, falava três idiomas, e estava no lugar certo. Porém lugares certos proporcionam pessoas aparentemente certas. Raquel levava sua vida profissional no topo de suas prioridades, e muitas vezes me confundia com um instrumento de trabalho. Não conseguia atender suas exigências administrativas em nossa relação, como a hora de falar algo ou calar-me. Ou ainda ter que descobrir o dia em que era pra eu ligar na madrugada para ela ser acordada como uma Julieta moderna. Não encarava nosso relacionamento como algo profissional, fatidicamente esse foi meu erro. Alguém soube suprir isso. Raquel não tentou me entender, não soube me entender como alguém diferente. Simplesmente eu não coube em seu molde, o molde que só ela cabia.

Raquel se apaixonou por outro homem que fiz questão de não saber seu nome, ele fazia mestrado com ela e pelo que entendi era um workaholic. Ela gostava de estudar e eu de caminhar de mãos dadas ostentando uma relação romântica e com Hércules na coleira cheirando a vizinhança toda. Ela pesquisava temas irritantemente intelectuais na internet, e eu me divertia com os seriados norte americanos na Sony. Certa vez, Raquel chegou a levar seu notebook com baterias reservas para um acampamento sem energia elétrica que fomos com uns amigos. Enquanto eu contava piada e imitava o presidente em volta de uma fogueira, Raquel procurava sinal do modem pra conectar-se e terminar um trabalho. Esse acampamento me rendeu vários “nunca mais”.

Eu tolerava as diferenças, muitas vezes achava um porre suas conversas sobre o boom da indústria chinesa, mas se a fazia feliz, eu gostaria de fazer parte disso. Mas Raquel não pensava como eu, definitivamente não. E da pior forma ela resolveu por fim. Ela começou um relacionamento com esse seu “amigo” de turma, e tipicamente profissional, levou isso como um experimento, como na bolsa de valores, ela arriscou, então resolveu me comunicar. Diz ela que apenas levavam como um flerte e que não teria coragem de beijar outra pessoa estando comigo, se dizia incapaz de trair. Engoli a seco essa alegação esfarrapada, como se traição fosse algo meramente físico, e a única coisa mais que quis saber foi há quanto tempo essa “amizade” havia se arrastando. Ao me responder, seu rosto corou, entendi então que ela via traição com os mesmos olhos que eu e apenas alegou aquilo como autodefesa. Três meses.

Diante de Raquel, naquele momento, minha única reação foi o silêncio, uma única lágrima escorreu do meu olho esquerdo denunciando a dor da perda. Estávamos sentados em um banco de praça que ela tinha em seu quintal, levantei-me, pensei em voltar e beijá-la para despertá-la e fazê-la entender que eu era seu homem. Olhei para trás, e estampado claramente em seu rosto estava a marca da decisão de que nada mudaria o curso. Eu era seu passado. Uma fina agulha apontou contra meu peito.

No caminho liguei para meu amigo Matias, e como há tempo não fazia, o chamei para um chopp, não falei sobre o que ocorreu, não tinha o hábito de falar sobre mim sem antes avaliar a situação e me por na defensiva para negar meus erros.

Matias e eu lembramos alguns casos engraçados de nossa infância, então um sms chega dizendo: “o fim deve ser certo, nos falamos amanhã. Raquel”. Lembrei, então, de um quarto idioma que Raquel falava: a língua da insensibilidade. Menti para Matias dizendo que minha mãe me chamava, e fui embora. O caminho para casa pareceu distante, muito distante.

Achei que o tempo tivesse apagado essa história. Mas Raquel me ensinou que o tempo é um placebo, e placebo não gera efeito quando sabemos o que ele é.

Depois da tortura pessoal dessa lembrança, olhei para o teto e dormi involuntariamente. O sol que entrava pela janela da sala bateu no meu rosto e acordei. Hércules estava olhando para mim, não lia mais meus pensamentos, apenas pedia sua refeição. Cachorro guloso.

Mandei um torpedo para Clara: “bom dia Clara, hoje você escolhe o restaurante. Beijos.” Estava tentando tornar nossa relação em algo mútuo. Pensei em minha amizade com Clara, e de como ela cuidava de mim, e eu não retribuía essa atenção. Isso poderia me ensinar algo.


continua...

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Conto: Paixão, lições e dor (parte 2)

Engraçado como muitas vezes o tempo vira e nos pega de surpresa, criei minha força particular, afinal fazia três meses desde que Raquel e eu tínhamos terminado nosso relacionamento, e nesse meio tempo nenhum contato. Mas o tempo vira, e muitas vezes o sol escaldante se transforma num gélido vento.

Era terça-feira, a noite parecia mais escura, uma ironia óbvia como se a noite previsse o futuro dos meus sentimentos. Recostado na cabeceira da minha cama, lendo Dan Brown – fugia de histórias de romance – tocou o telefone. Número restrito. Telemarketing essa hora? Deixei tocar. Insistiu. Atendi. A pessoa do outro lado foi responsável pelo tempo frio.

- Raquel? Oi... – Busquei palavras, em vão.

Raquel me ligou sob o pretexto de saber como estava Hércules, um dálmata de longas pernas e que vivia encardido por mais banho que tomasse, tínhamos adotado ele no nosso terceiro mês de namoro, embora Raquel nunca tenha gostado muito dele, já que ele tinha um sério vício de sujar sempre suas roupas ao cumprimentá-la, Hércules era uma ponte para ela propositalmente me mostrar algo de sua vida: ou seu sucesso, ou sua incerteza, ou sua felicidade ou o que eu mais temia: um possível recomeço. Nossa conversa não saiu do zero a zero. Nossa intimidade não era mais a mesma, falamos sobre trabalho, sobre a pós-graduação e eu não pude poupar a piadinha que sempre fazia: pedir pensão alimentícia para o Hércules, às vezes achava que ele era um leão vestido de dálmata, maior apetite, impossível. Convidei-a para visitá-lo, afinal era sua mãe, para meu agrado ou desagrado, ela aceitou o convite. A conversa não durou mais de cinco minutos, pelo menos no telefone ela foi curta, mas garanto que ela durou muito tempo dentro de mim. Ok, fica assim então! Já vou avisar o Hércules que sua mãe vem vê-lo! Tchau.

Dizem que quando queremos sonhar com algo devemos mentalizar bastante o objeto do sonho, ou ainda ver um filme que arrepie os cabelos. Na intenção de me poupar de sonhos com Raquel vi um filme de terror. Confesso que dormi com medo, filme maldito, mas o sonho sabe priorizar os fatos.

Sonhei que estava longe, longe mesmo, num lugar parecido com um jardim apenas em duas cores, verde e vermelho. Não me via no sonho, só via uma pessoa, Raquel, ela não parecia andar, parecia flutuar, seus cabelos pretos tomavam formas encaracoladas nas pontas, e conforme ela vinha em minha direção eles dançavam como se me convidasse a tocá-los, a cheirá-los. Seus olhos, castanhos claros eram as portas desse convite. Não havia palavras saindo de sua boca, ainda assim as palavras eram claras: “seja meu”. Como um mantra, uma boa música, aquele momento começou a chegar a sua apoteose. Vi seu rosto, perfeito. Seu queixo fino e seus olhos, que ao rir fechavam parecendo de uma gueixa. Um sorriso arrebatador. Senti-me restaurado, novo. Repentinamente meu rosto começou a ser tocado por alguém que não via. Estranho. Algo úmido e insistente. O romantismo parecia acabar com esse toque. Foi então que acordei! Maldito Hércules, estava me lambendo pedindo ração. Quem manda ter um leão metido a dálmata de estimação? Oito horas! Atrasado para o trabalho. Obrigado Hércules.

Vesti-me correndo, gritei para minha mãe dar comida para o Hércules, antes que ele devorasse um ser humano, e agradeci ironicamente por ela ter me acordado. A caminho do trabalho pus a pensar sobre o sonho, inconseqüentemente um sorriso se formou no meu rosto, sabia que teria uma saga épica a partir de então, minha razão e minha emoção. Ia precisar de um árbitro para esse duelo, um césar, Clara, ela veria melhor. A noite chegou mais uma vez, rapidamente como nunca.

- Alô? Clara... Tenho uma ótima ou péssima notícia, você quem vai avaliar.

Fazendo muxoxo, Clara perguntou.

-Raquel?

- Bingo!

continua...

terça-feira, 6 de julho de 2010

Conto: Paixão, lições e dor (parte 1)

Não me recordo de pior época. Há quem se reclame de épocas de recessão, grande inflação e problemas políticos, não os julgo pequenos, mas certamente eles não proporcionam as dores que senti naquele dia. Dizem que em meio à dor nos conhecemos melhor. Tive que viver para acreditar.

Tenho uma virtude dolorida: entregar-me sempre, e por ela saber disso, senti que Raquel protelou um fim certo, garanto que não tenho premonições, mas sabia que o dia “d” chegaria. Enfim, chegou. Algo foi retirado de mim, senti-me mais leve, não por alívio, antes fosse, mas porque sentia que algo bom dentro de mim desintegrava. Era o fim. E agora? Fiquei pensando o que fazer com meus planos, como poderia vislumbrar outra mulher naquele vestido de noiva? Como recomeçar a sonhar? Será que eu saberia fazer isso de novo? Sonhar! Os sonhos já estavam prontos, bastava concretizá-los. Definitivamente não pensava em recomeço, o fim era mais amado por mim.

Lembro-me vagamente do que Raquel me disse, podemos ser amigos, vou eternizar o que vivemos... Apenas uma frase martelou-me bruscamente: “Sei que será feliz!” Como? O que eu chamava de felicidade estava escorrendo para sempre de minhas mãos. O que eu fiz de errado?

“O que eu fiz de errado?” perguntei para Clara.

Clara e eu éramos como irmãos, desde o oito anos íamos juntos para a escola, me rendia a ser papai nas brincadeiras de casinha a troco de um gol a gol depois. Clara teve a solidariedade nada peculiar de uma criança: brincar de bola, ouvir bobagens que só um garoto poderia ouvir e abrir mão de suas vontades para me agradar, às vezes penso que me sujeitava a ser papai em suas diversões não por sua insistência, mas sim porque eu tinha algum senso de que ela deveria se individualizar também, mas desde cedo vi que Clara nutriu a necessidade de cuidar de mim.  Ela sempre previu o término entre mim e Raquel, eu detestava isso, ela sempre acertava. A minha paixão contradizia a verdade de Clara. Aprendi com ela a suspeitar da paixão.

Clara foi meu apoio, foi um ombro, um ouvido e mais que uma amiga. Chorou comigo e riu de mim. Fiquei chateado, ela notou e logo desfez o sorriso. Ela me perdoou pela distância que criei por causa de Raquel, me fez enxergar minhas tolices e me obrigou a prometer nunca mais errar dessa maneira. Ela teve o cuidado de me permitir errar novamente, mas me forçou a aprender lições comigo mesmo, alegou que eu já tinha vinte e três anos, e que era hora de aprender algo. Fui obrigado a concordar.

A noite era mais doída. Doía como uma friagem, me sentia nu, me sentia sem mim. Não hesitei em pegar o telefone. Disquei para Raquel. Antes de completar a ligação, me arrependi, desliguei, tive que me refugiar. Alô Clara? Preciso de palavras certas... Após nossa conversa podia não estar aquecido como se estivesse diante de uma lareira, mas meus pés estavam quentes, um alívio! Obrigado Clara, volte a dormir.

Os dias foram passando, as noites automaticamente iam se aquecendo. Resolvi comer uma pizza, Clara como na infância, mais uma vez não falou não para mim. Conversamos, rimos, caçoamos de um senhor ao lado de nossa mesa com uma imensa peruca preta, que mais parecia uma taturana. Pedimos para o cantor fazer Let it be, eu sempre detestei Beatles, mas esse era um daqueles pequenos esforços que eu fazia para respeitar a individualidade dela. A noite foi bastante divertida, ao sair da pizzaria parei. Olhei para Clara e inconseqüentemente falei: Clara, notou que não falei sobre Raquel? Pelo desdém de seu olhar entendi que não era mesmo para falar sobre ela. Minha amiga me conhecia mais que eu mesmo. Decidi confiar.

No caminho de volta para casa fingimos uma briga para ver qual CD ouviríamos. Fomos obrigados a ouvir FM como um ponto de equilíbrio, Tim Maia cantava. Quando o inverno chegar, eu quero estar junto a ti...

- Clara, me diga algo.  - Falei isso levando nossa brincadeira do CD para algo sério.

- Hum. - Sussurrou ela enquanto cantava junto com o rádio.

- Por que nunca namorou?

Surpresa, Clara esperava uma reclamação da pizza de mussarela e não algo tão pessoal.

- É... – hesitou – Acho que não chegou minha hora. A pizza de mussarela estava péssima, não?

Toquei em algo errado. Assenti com a cabeça e fiquei envergonhado, não pela pergunta indiscreta, afinal Clara era minha amiga, me envergonhei por não saber nada dela, pelo fato de ser egoísta e deixar que ela cuidasse de mim, e eu sequer esboçar um esforço para conhecê-la. Clara me ensinou no seu silêncio, o maior princípio do relacionamento: Saber que nele somos dois.

Fomos em silêncio para casa. Deixei Clara em sua casa, três abaixo da minha. Tranquei-me no meu quarto. Pensei em Raquel, e pude enfrentá-la sozinho. Orei baixinho e pedi para Deus que eu aprendesse um pouco sobre compreensão. Deus estava prestes a me passar a prática.

continua...