terça-feira, 20 de julho de 2010

Conto: Paixão, lições e dor (Parte 5)

Havia colocado o fone de ouvido para ouvir Djavan e me livrar dos comentários mórbidos daquele lugar. Fui acordado por Rose que me trazia informações médicas. Ela me aconselhava a ir para casa descansar já que Clara estava desacordada e assim que tivesse notícias me ligaria. De imediato neguei seu pedido, sabia que se a situação fosse inversa Clara jamais arredaria o pé daquela UTI. Rose me apresentou inúmeros argumentos, e por fim me convenceu a voltar para casa.

Não me recordo de como ter chegado ao hospital, olhei para os meus pés e percebi que ainda estavam descalços, o chão gelado me incomodava. Procurei as chaves do meu carro, em vão, então chamei um táxi. O caminho me pareceu uma tortura. As indignações e questionamentos tomavam minha mente sem piedade. Acompanhava com os olhos as luzes da cidade, conforme iam passando por mim, me traziam reflexões. Pensei então na brevidade da vida, usei do acender e apagar das luzes uma metáfora dela. Hoje aceso, amanhã não, me senti sem forças, sem expectativa, me desmotivei por entender que a vida não atende muito aos nossos comandos e que por inúmeras vezes toma caminhos que não temos gestão. Essa idéia me chateou. Enfim, em casa.

Assim que desci do táxi, corri para meu quarto pegar minha carteira, calcei minhas havaianas vermelhas e desci para pagar a viagem. Agradeci ao taxista e notei seu bigode digno de um mexicano. Achei engraçado e não contive uma piada sem graça: Gracias señor. Apesar de ousar humor nesta situação não sorri, e o taxista muito menos. Fui até a garagem para me certificar de que não havia ido de carro para o hospital. Ao voltar, encontrei com Hércules no caminho, abaixei e recebi um de seus beijos molhados, entendi como um consolo para alguém que sofria.

Olhei para o relógio, três horas. Praguejei o tempo, ele sempre conspirava contra mim. Corria nos melhores momentos e me dava golpes morosos em tempos de dores. Fui para a cozinha, permiti que Hércules me acompanhasse. Enchi uma tigela com leite para ele e coloquei água para ferver, um chá seria a tentativa de me acalmar, chá de prozac seria ideal.

- Oi filho – minha mãe entrou na cozinha – tentei te ligar, mas ouvi seu celular tocando no quarto, fui obrigada a te esperar.

Abracei minha mãe. Chorei.

Aquela mulher que eu abraçava certamente havia sido projetada exclusivamente por Deus para ser mãe, sua voz era doce e conseguia ainda assim trazer broncas com bastante eloqüência. Os ombros da minha mãe haviam sido feitos especialmente para suportar confortavelmente abraços, os braços dela pareciam entender dores, e além de entender tinham o cuidado de deixá-las mais leves, mais fáceis de enfrentar. Chorei muito, a ponto de molhar seu pijama azul claro. Pedi desculpas, ela meneou a cabeça como quem diz não ter problemas, e olhando para os meus olhos, entendendo minha dor, pôs-se a chorar também. Minha mãe soube chorar por mim e por Clara, ela compreendia o momento.

- Ah, mãe! – falei com a voz embargada. – Por que isso foi acontecer com a Clara?

- Filho, - disse minha mãe em tom de conforto, - existem momentos em nossas vidas que não vamos entender nunca, ouso ainda dizer que não os vamos entender justamente por não terem mesmo explicação. Eu gostaria muito de confortá-lo com esperanças, explicações e dizer que isso não passa de um momento e que Clara terá vitória. Mas filho, – nessa hora minha mãe limpou uma lágrima de seu olho, respirou fundo e voltou falar – só posso te encorajar a continuar, a torcer para que Clara se recupere, não busque explicação, sua busca dói muito, apenas enfrente a situação. Sei que ela é tua amiga, lembre-se dos momentos bons que viveram. Isso te fará sentir melhor.

- Mas isso é injusto! Ela é a pessoa mais pura que conheço, mãe! – Desabei a chorar e a soluçar.

- Como te disse, meu filho. Justiça é fazer doer, sinto dizer, mas a injustiça também é para todos.

Dei um beijo em minha mãe, tomei o último gole de chá, e fui para o quarto na esperança de poder cochilar um pouco. Era sexta-feira, não trabalharia no sábado, vibrei por não ter que explicar minha falta no outro dia ao meu chefe, poderia dormir um pouco mais. Subi para o meu quarto, minha mãe passou a mão no meu rosto e disse que estava orando por mim e por toda a família de Clara. Pela primeira vez me questionei se Deus tinha propósitos para todos nós, questionei ainda se Deus jogava dados com o universo. Subi para o quarto e na escada questionei se Deus de fato existia. A dor nos faz tolos ou sábios. Torci para ser um momento de tolice.

Assim que entrei no quarto, abri meu notebook, conferi alguns e-mails, respondi outros, abri meu MSN, vi Matias online, conversamos um pouco, ele ficou de vir me visitar, achei bom, não que queria estar com alguém, mas fugir da presença de meus monstros seria saudável. Desconectei, deitei na cama e acendi meu abajur, olhei para o teto antes de abrir o livro que havia começado a ler naquela semana. Era Clarice Lispector, “A Hora da Estrela”, antes de iniciar a leitura, olhei uma frase na capa que me chamou atenção: “Ela acreditava em anjos e porque acreditava, eles existiam.” Acreditei em Deus.

Com os pensamentos inquietos vi a oportunidade de ler o livro todo, o fim não me fez melhor, fiquei mais sensibilizado. Me dei a oportunidade de pegar no sono, depois de relutar, virar e me contorcer na cama, dormi. Sonhei. Meu sonho trazia consigo certo peso, via neste sonho uma mão que eu conhecia, que sabia onde encontrar, mas não distinguia seu dono, ela cada vez aumentava seu tamanho e como num estouro ela se sujava de sangue. Acordei algumas vezes e sempre que pegava no sono via esta imagem.

A campainha soava insistentemente. Acordei, olhei no relógio, dez horas. Droga, hoje é sábado! Desci as escadas gritando para a visita aguardar, prometi para mim mesmo que se fosse um vendedor eu jogaria água quente nele. Próximo da porta de entrada, em uma pequena estante, havia um bilhete da minha mãe que dizia ter ido ao mercado. A campainha voltou a tocar. Calma!

Abri a porta. Assustei. Sei que não contive a cara de espanto e por alguns momentos emudeci.

- Oi Raquel...

Certamente ela havia se vestido para um encontro e não para ver seu cachorro sujo. Como poderia ter esquecido? Havíamos combinado sua visita para o Hércules. Então me expliquei.

- Desculpe a demora pra atender a porta, é que estava dormindo tive uma noite complicada e...

Raquel me interrompeu, me abraçou da mesma forma de quando éramos namorados. Hesitei por uns segundos e retribui o abraço com muito menos sentimento. Raquel percebeu sua ousadia e recuou.

- Nossa, você está muito bem! – me elogiou com um belo sorriso no rosto.

Agradeci o elogio e pensei comigo, será que ela esperava que eu me anulasse por ela? Raquel notou meu desdém por ela, por algum motivo sua presença não me alegrou, confesso que também não me entristeceu, entendi que Raquel nesse momento não fazia parte do topo de minhas prioridades, uma perda pra superar outra perda? Vida injusta, não ousaria pensar o que perderia para superar a possível morte de Clara.

Convidei Raquel para entrar, ela foi tomar café da manhã comigo, conversamos bastante, e me perguntava quando ela perguntaria por Hércules, o verdadeiro motivo de sua presença. Acho que ela havia esquecido disso, já havia se passado uma hora e nada.

Aquele dia seria longo. Longo e torturante.


continua...

Um comentário:

  1. Pois é... tem momentos na vida q as crenças são abaladas. Permanecer firme, de mente aberta para situações melhores, sempre.
    “Ela acreditava em anjos e porque acreditava, eles existiam.”
    Pode ser ingenuidade, babaquisse. Que seja.
    Simbora pra frente!

    by project del Marte

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